Por Nelson Valêncio – 01.09.2017 –
Conhecer Fátima Gonçalves, uma especialista em generalidades, que fala a linguagem dos técnicos e conhece bem a cultura de tecnologia de vários mercados, foi uma dos acertos do Concrete Show 2017. O evento, que reuniu a cadeia do setor, mostrou que um Brasil que resiste à cretinice da crise atual pode sim recuperar o país fraturado que temos nas mãos. Fátima, cuja formação acadêmica é comércio exterior, mergulhou no mundo dos engenheiros e técnicos e, com mais de 30 anos de carreira, mostra como a passagem por empresas como Siemens e Trópico foi benéfica para sua atuação na Trimble, uma empresa com vasto portfólio que sempre a surpreende (um antídoto contra o que ela parece abominar: o tédio). Acompanhem, abaixo, a entrevista.
InfraROI – Sua carreira técnica começou em telecomunicações?
Fatima Gonçalves (FG): Sempre em fabricantes de tecnologia. Multinacionais como a Siemens, como a antiga Lucent, além da brasileira Trópico, pertencente à época ao CPqD e à Cisco. Depois disso, sai de telecomunicações e trabalhei um tempo no setor de software como serviço (SaaS). Ficou monótono, mas foi um desafio interessante no começo. Depois eu me cansei e, quando eu canso, vou embora (risos). Na Trimble, eu consegui o trabalho mais interessante do mundo porque não tem tédio, sempre há uma tecnologia nova e quando eu penso que já conheço todo o portfólio, eles aparecem com uma novidade.
InfraROI – Você é uma estranha no ninho, uma especialista não-engenheira. Qual é sua formação acadêmica?
Fátima: Sou formada em comércio exterior. Minha entrada no mundo de tecnologia aconteceu quando a empresa em que eu trabalhava foi comprada pela Siemens. Eu estava no setor financeiro, ao lado de muitos funcionários, e mais uma vez o tédio me pegou. Fui até o RH e pedi por uma vaga em algo interessante e, coincidentemente, no departamento que desenvolvia os produtos eles precisavam de alguém que não tivesse nenhum conhecimento em telecomunicações: havia uma linha de produtos para um público menos técnico que reclamava da tecnicidade dos manuais e do atendimento dos técnicos. Ou seja, eu preenchia o requisito número 1. Durou três meses e, como eu escrevia os manuais de instruções, de montagem e de operação – e até os de treinamento – aprendi sobre o setor. Minha evolução me levou ao cargo de gerente de produto responsável pelo desenvolvimento de uma linha.
InfraROI – Houve alguma mudança de tratamento por você ser mulher?
Fátima: Minha personalidade “dócil” conquistou a todos, subi na mesa, rodei a baiana e todo mundo ficou bonzinho. Como dizia meu professor de química (eu tenho uma formação técnica em química) os piores venenos vêm nos menores frascos.
InfraROI: Na Trimble, você começou fazendo o quê e como está agora?
Fátima: Eu entrei na área de desenvolvimento de negócios, responsável por fazer a ponte entre as diversas divisões. Por conta do imenso portfólio, as divisões são muito especializadas. Existe a área de construção, que é dividida em duas grandes subdivisões e depois têm as divisões menores: uma para infraestrutura e outra para edificações. O conhecimento requerido é diferente, mas muitas vezes há uma oportunidade na área de construção de edificações e eles precisam de uma solução de infraestrutura. Como são todos muitos focados, acabam não percebendo essas oportunidades e eu atuo justamente nisso, visitando vários tipos de possíveis clientes, grandes projetos e acabo trazendo diversos especialistas de áreas diferentes. Meu papel é de generalista: eu conheço a superfície do portfólio inteiro a ponto de chegar em qualquer tipo de cliente e apresenta-lo e até mostrar algumas oportunidades. Quando começam as dúvidas muito técnicas, o que chamamos de escovar bits em telecomunicações, agrego o especialista.
InfraROI – A área de mineração da Trimble continua da mesma maneira?
Fátima: Mineração é um grande cliente nosso e vou fazer uma brincadeira: em novembro do ano passado, lançamos um equipamento na área geoespacial e que é uma novidade, pois todo mundo fica em dúvida entre ter uma estação total de topografia ou um laser scanner. Pois bem: fizemos dois em um. Ele é uma estação total com as características e qualidades de um equipamento de topografia puro, além de ser laser scanner (Trimble SX10). Nós o levamos a uma grande mineradora brasileira para apresentá-lo e, resultado: não nos deixaram “sair” com ele. Compraram o equipamento de demonstração e o sucesso foi tão grande que tem fila de entrega na fábrica. Só saímos com o equipamento para emitirmos a nota de venda e realizarmos o processo fiscal normal, entregando-o em 15 dias.
InfraROI – Qual a função desse equipamento?
Fátima: Ele traz o melhor dos dois mundos. Se uma mineradora quer calcular o volume de minério, não precisa colocar no caminhão e pesar tudo. Ela simplesmente escaneia aquilo com um equipamento que coleta uma quantidade grande de volumes de pontos. É o caso do SX10, que coleta 26.600 pontos por segundo, criando uma imagem sólida. Com isso, pode-se saber quantas toneladas há na pilha de minério. Agora, vamos transportar isso para o mundo da construção: para se ter uma referência geoespacial – longitude e latitude – precisamos de uma estação de topografia com o GPS, conseguindo o georreferenciamento daqueles pontos capturados. Um laser scanner comum não dá isso. Como a SX10 é uma estação total e um laser scanner, a nuvem de pontos que eu coleto já sai georreferenciada.
InfraROI – Na prática, como isso ajuda em projetos de construção?
Fátima: Normalmente nossas soluções envolvem vários elementos de uma cadeia de produção. O dono do dinheiro, seja público ou privado, quer um projeto dentro do budget, no prazo e na qualidade contratada. Do outro lado, os fornecedores de serviços pensam em orçar um projeto onde se entrega a obra contratada, com lucro. Ocorre que muitas vezes ele está entregando uma proposta com dois medos: o de perder e o de ganhar e ter prejuízo. Se você utilizar a máquina inadequada que não consegue te dar todos os parâmetros para fazer um orçamento, mesmo que seja preliminar, esses medos são reais.
InfraROI – Você tem exemplos reais disso?
Fátima: Nós temos no Brasil soluções para otimizar a terraplanagem que garantem até quintuplicar a produtividade. Uma empresa pequena que pega um projeto complexo, pode ficar com todas as máquinas comprometidas, mas se adotar a automação, pode assumir mais projetos com a mesma quantidade de máquinas, porque a produtividade aumenta. Exemplo: a máquina trabalha na quantidade certa de vezes para atingir a terraplanagem projetada e chegar no nível certo mais rápido e economizando combustível. Na compactação, a meta é ter o maior ganho para o dono da obra: se eu não passei o número de vezes suficientes com a motoniveladora, o processo de pavimentação não vai absolver a base e a sub-base que são colocadas. Resultado: rodovia será uma obra ruim. Por outro lado, se a máquina atua mais vezes que o necessário, ela descompacta e o efeito é o mesmo. Para solução de compactação, a automação garante o nível adequado, com quantidade certa de passadas e a qualidade exigida.
InfraROI – As construtoras brasileiras adotam isso?
Fátima: Eu tenho um caso real que conheci num treinamento internacional sobre pavimentação. Os palestrantes explicavam como foram contratados para a construção de um anel rodoviário em Huston, cuja especificação do pavimento rígido de concreto era de 14 cm. A máquina concreteira tinha a característica especial de não poder ser paralisada durante a aplicação porque cada parada custava nada menos do que US$ 800 mil. Ela roda a 2 km/h, mas não para, de forma que a construtora só conseguiria cumprir o budget e o cronograma, na qualidade exigida, usando automação, ou seja, hardware e software aplicados à máquina, com a adoção de sensores. Enfim, a tecnologia foi aplicada, mesmo porque a dona da obra fiscalizava cada metro de concreto aplicado – e não cada quilômetro. Se o pavimento tivesse menos que 14 cm, a contratante poderia exigir que a construtora corrigisse o problema, pagando os custos. Se a camada fosse maior, o problema era da construtora. Bom, tudo deu certo graças à automação e quando acabou o treinamento, os instrutores começaram a falar em português. A contratada era uma construtora brasileira!
InfraROI – Nós estamos vendo a entrada de grupos estrangeiros de construção no Brasil. Você acha que eles podem trazer esse tipo de adoção mais rapidamente ou as brasileiras já estão adotando?
Fátima: As brasileiras já estão adotando só que em ritmo muito lento. Isso acontece por diversos fatores, incluindo a quebra de paradigma, que sempre é difícil. A crise atual atrapalhou muito e as empresas brasileiras que estavam interessadas reduziram o ritmo de adoção. Estamos longe do esperado para um mercado tão necessitado de construção e tecnologia como o brasileiro. Houve várias iniciativas de governos, o de Santa Catarina, que saiu na frente e lançou o primeiro caderno BIM (Building Information Modelling), fez parcerias com diversas empresas para transferência de conhecimento (sem dinheiro de nenhuma das partes). O governo do Paraná assinou convênio conosco e, agora, o Ministério da Indústria e Comércio (MDIC) fechou um compromisso de trazer a experiência do Reino Unido em BIM. Essa é uma iniciativa importante, mas tem que avançar e não ficar só no mundo dos projetos. É preciso levar isso para o canteiro de obras também.