Yves Besse* – 22.03.2022 – O retrato do descaso com o saneamento básico e tratamento da água que bebemos e preparamos refeições é a falta do serviço de esgotamento sanitário
O Brasil ainda não conseguiu priorizar os problemas básicos para ter adequado tratamento de água e esgoto e diminuir a mortalidade infantil e as doenças veiculadas a essa carência. Para piorar a situação, ainda há uma elevada quantidade de químicos detectados nas mais diversas cidades, inclusive em grandes capitais. A emblemática presença de agrotóxicos na água coletada em cidades totalmente urbanas é uma prova irrefutável de que há algo errado no sistema.
Mesmo distante de zonas produtoras de grãos, como soja, grandes cidades registram a presença de dezenas de químicos usados em lavouras que, certamente, não são plantadas no meio urbano. Dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde, compilados pelo portal Por Trás do Alimento, indicam, por exemplo, a presença de 27 agrotóxicos na água que abastece São Paulo – 25 deles detectados acima do limite considerado seguro na União Europeia entre 2014 e 2017, mas tolerados no Brasil.
Outro agravante é o fato de apareceram contaminantes emergentes, decorrente principalmente de remédios que tomamos, como os hormônios que não são bloqueados pelos sistemas tradicionais de tratamento de esgoto, e que voltam às águas utilizadas para abastecer o consumo humanos. Tão invisível como a presença de pesticidas e substâncias farmacêuticas indevidos na água são os impactos sobre a saúde da população. Ingeridos continuamente na água e na comida, podem causar uma lista considerável de doenças — de câncer a defeitos congênitos e distúrbios endócrinos.
No caso dos agrotóxicos, isso ocorre porque a água que abastece grandes capitais normalmente tem origem em rios que cruzam áreas rurais e de lavouras. Boa parte da população urbana, porém, acredita que esses males acometerão apenas o produtor que está na lavoura aplicando químicos e desconhece a existência dos contaminantes emergentes.
Em razão do atraso nos investimentos em saneamento, ainda há um dever de casa a ser feito: a prioridade para o tratamento de esgoto, com o objetivo de diminuir a mortalidade infantil e as doenças veiculadas hidricamente. Nos municípios onde já há 100% de tratamento, porém, essas deveriam ser a segunda prioridade. Como essas contaminações não fazem parte das obrigações contratuais do concessionário, ainda não há normas relativas a elas e em geral não se dá a devida atenção a esse problema. De acordo com dados compilados no portal O Mapa da Água, moradores de São Paulo e Florianópolis estão entre os que mais beberam água imprópria entre 2018 e 2020. O estudo indica, ainda, que 1 em cada 4 cidades que fizeram esses testes havia presença de substâncias acima do limite ideal.
*Yves Besse é presidente da Cristalina e ex-presidente da Associação Brasileira dos Concessionários Privados dos Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).