DW Brasil – 26.03.2020 –
Com serviços de saúde limitados, pequenos municípios tentam impedir entrada de visitantes para conter pandemia. Falta de comando do governo federal dificulta combate à doença, criticam autoridades locais.
Na entrada da pequena São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, a parada agora é obrigatória. De máscara e luvas, agentes da Defesa Civil dão orientações aos motoristas sobre os riscos do novo coronavírus e desencorajam visitantes a entrar na cidade.
A iniciativa é também uma resposta para conter moradores que queriam, por conta própria, isolar o município. Situada na Serra do Mar, a cidade de 10 mil habitantes é destino popular no Carnaval e nos fins de semana, e um terço de sua população tem mais de 60 anos de idade.
“Aqui temos serviços de saúde de atenção básica, não temos centro cirúrgico”, explica Ana Silvia Carvalho de Ferreira, responsável pela pasta. O único respirador disponível, fundamental para manter a vida de doentes graves com covid-19 – a doença respiratória causada pelo novo coronavírus – serviria apenas para estabilizar o paciente, diz Ferreira. O SUS é praticamente o único serviço de saúde em São Luiz, e 99% da população dependem dele.
Às margens da rodovia Oswaldo Cruz, que leva ao litoral norte paulista, Arildo Junior, de 25 anos, baixou os preços na esperança de vender todos os produtos perecíveis, como queijo, a quem ainda transita pela estrada. Para evitar a contaminação por coronavírus, as tias dele, que gerenciam a barraca, estão isoladas num sítio da família, junto com outros parentes idosos.
“Eu ainda fiquei porque, se pegar a doença, tenho mais chances de me curar. E se não vendermos os produtos que estragam rápido, o prejuízo será muito grande”, diz Junior. Com o fechamento do comércio até que a crise passe, a família espera sobreviver com as vendas de leite que o pai faz a uma cooperativa.
Desde a última terça-feira (24/03), todos os 645 municípios de São Paulo entraram em quarentena. O comércio fechará suas portas por 15 dias, ficando permitido o funcionamento de apenas aqueles dedicados aos serviços essenciais, como mercados e restaurantes que fazem entrega, segundo determinação do governo estadual.
Em cidades turísticas, como Ubatuba, na costa norte, as praias estão vazias nos primeiros dias quentes do outono. Com uma forte dependência da renda trazida pelos visitantes, Ubatuba montou uma força-tarefa para desestimular a entrada deles na cidade – mesmo os proprietários de casa de veraneio.
Nas vias de acesso, barricadas param os carros, e funcionários da saúde pedem, gentilmente, que os turistas deem meia volta. No único hospital da cidade, que tem população fixa de 100 mil e chega a triplicar esse número em feriados, há quatro respiradores. Outros quatro estariam reservados para atender pacientes graves, informou a prefeitura.
Até a tarde de quarta-feira, havia 34 casos de covid-19 suspeitos em Ubatuba – a maioria de pessoas entre 40 e 49 anos. Em todo o estado de São Paulo, 745 casos foram confirmados. Das 57 mortes registradas no país até esta quarta, 48 foram em hospitais paulistas.
“As cidades estão tentando, por conta própria, colocar em prática medidas eficientes de isolamento social para conter a pandemia. Mas há uma ‘bateção de cabeça’ porque falta um alinhamento central do governo federal”, diz Paula Deorsola, promotora do Ministério Público em Ilhabela.
Um dos destinos preferidos dos paulistanos em quarentena, a ilha, de 32 mil habitantes, emitiu um decreto para inibir a entrada de visitantes. O acesso, feito por balsas, estava sendo controlado pela Polícia Militar. Mas, nesta terça-feira, uma liminar suspendeu a obrigatoriedade desse apoio fiscalizatório por parte da polícia, e o decreto pode ficar inócuo.
“Não tínhamos que estar discutindo essas questões no cenário atual, tínhamos que estar trabalhando juntos para controlar a pandemia”, critica Deorsola. “Falta um comando central”, adiciona.
Ilhabela também vem tentando conter uma epidemia de dengue, e tem apenas quatro leitos para tratamento intensivo. “O Ministério Público, neste momento, está pensando em medidas com um foco: evitar o colapso do SUS”, diz a promotora.
Preocupação com abastecimento, saúde e economia
Em Brasília, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) ouve todos os tipos de dificuldades dos gestores municipais e se preocupa com medidas adotadas. “Tem municípios que estão fechando acesso, o que está atrapalhando até o abastecimento das cidades. Se todos fecharem, daqui a pouco o Brasil para o abastecimento”, disse à DW Brasil Glademir Aroldi, presidente da entidade.
Segundo ele, a principal preocupação é quanto à capacidade dos serviços de saúde nas cidades menores. “O ideal é que possamos alinhar as ações. Não estava acontecendo, mas esperamos que comece a acontecer. Temos que unir o país, União, estados e municípios, para ter as mínimas condições para atender a população”, comenta Aroldi.
O último pronunciamento em rede nacional do presidente Jair Bolsonaro , que defendeu o fim do isolamento social e chamou a pandemia de “histeria”, foi duramente criticado pela CNM. “As opiniões particularizadas do senhor presidente são contrárias a todas as recomendações científicas e técnicas da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde”, afirma a entidade.
Sem condições de atender pacientes graves, cidades como Ilhabela, Ubatuba e São Luiz do Paraitinga encaminham esses casos à cidade de referência, conforme uma resolução do Ministério da Saúde de 2011. O mesmo vale para outros milhares de municípios do país.
No mapa nacional, essa divisão resultou em 438 centros, chamados de regiões de saúde. Entre elas, 144 não possuem nenhum leito de cuidado intensivo disponível ao SUS por 100 mil habitantes, aponta o relatório mais recente de Monitoramento da assistência hospitalar no Brasil (2009-2017), da Fiocruz. A situação mais crítica é a do Nordeste.
A pesquisa mostrou que 60% dos hospitais que atendem pelo SUS no país tinham menos que 50 leitos em 2017. “Um aspecto importante é a distância dessas regiões de um município que possui leito de UTI que poderia atender os moradores dessa áreas desassistidas. No Nordeste, há regiões onde muitos moradores que foram internados pelo SUS tiveram que percorrer mais de 250 quilômetros”, detalha Josué Laguardia, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde da Fiocruz.
Uma segunda preocupação dos gestores, ressalta o presidente da CNM, é voltada para o atendimento às famílias nas regiões mais pobres do país depois que a pandemia passar. “Com a paralisia possível da economia, muitos não terão como colocar comida na mesa”, comenta sobre a necessidade de um auxílio social.
Sem acesso a serviço privado de saúde, José Santos, de 60 anos, sabe que está no grupo de risco. Desempregado, ele cata latinhas de alumínio nas praias, em Ubatuba, para pagar o aluguel da família. Com restaurantes e quiosques fechados, ele diz ter mais dificuldade para lavar as mãos enquanto percorre cestos de lixo em busca do material que garante a renda.
“Álcool em gel, então, nem pensar. É muito caro. Hoje mesmo saí pra rua tentando ganhar 20 reais, mas tá difícil, a cidade está vazia. E os turistas sempre me ajudaram”, diz enquanto busca restos de alumínio. “Estou com medo de pegar essa doença nova aí”, refere-se Santos à covid-19. “Mas estou com mais medo ainda da miséria. A gente sempre foi pobre. Mas agora pode ficar ainda pior”, desabafa Santos.