“Estamos todos pagando a conta”

Nelson Valêncio (para InfraDigital) 10.08.2022

Para Cyro Boccuzzi, sócio e diretor da consultoria ECOEE, a modernização do setor elétrico precisa ser estruturada também do lado da infraestrutura. Hoje, na avaliação dele, quem paga a conta pela falta de modernização, incluindo a digitalização e troca de ativos obsoletos, é toda sociedade. Sem regras claras, projetos como a medição inteligente vão avançar de forma mais lenta de acordo com Boccuzzi que, além de ex-executivo em várias companhias do setor, lidera há 15 anos o Smart Grid Fórum, um hub de discussões sobre a modernização da infraestrutura do setor elétrico. Acompanhe:

Cyro Boccuzzi, sócio e diretor da consultoria ECOEE (foto: divulgação).

InfraDigital – Com sua experiência de mais de 15 anos na liderança do Smart Grid Fórum, a digitalização está na ordem do dia das concessionárias de energia.

Cyro Boccuzzi (CB): O que acontece é que a própria sociedade, de maneira geral, está se digitalizando e os consumidores têm investido bastante em tecnologias de informação e comunicação. As empresas concessionarias precisam acompanhar isso e precisam de recursos e estímulos para também transformar os seus sistemas que, na grande maioria dos ativos, são equipamentos analógicos, não conectados com servidores. Na verdade, a gente vê um consenso no Brasil: todos falam que é preciso trocar os sistemas tradicionais por sistemas inteligentes.

InfraDigital – Mas há barreiras…

CB: Sim. Recentemente tivermos a crise energética e mais um tarifaço, com grande número de custos repassados para as tarifas e essa alocação com a infraestrutura atual é injusta, com pouca margem de manobra, em vez de uma alocação otimizada que favoreceria a modernização da rede. Há vários anos discute-se quem vai pagar a conta desses custos. Na verdade, já estamos pagando: o setor elétrico vive de rateio para pagar conta do passado, desde 1995, quando houve a primeira reformulação do setor, com um acerto de contas. Em 2001, com o racionamento houve a mesma coisa. E isso se repetiu em 2012, 2014. Em 2021, houve outros custos como o acionamento das térmicas. É o custo de não mudar, de fazer mais do mesmo, sem mudar a infraestrutura. Essa discussão de investir para trazer o setor para outro patamar de tecnologia é a decisão acertada.

InfraDigital – O setor continua pressionado para mudar?

CB: A própria geração distribuída avança até por conta das altas tarifas e, na verdade, tudo isso pressiona cada vez mais e esta pressão vai aumentar. Precisamos administrar essa conta de outra forma. A Aneel lançou uma consulta pública sobre recursos energéticos distribuídos e outros desafios. São mais de 900 contribuições e eu tive a paciência de ler todas. Fala-se muito em tecnologia, em medição inteligente, que favorece o consumidor e as empresas do setor. O consumidor consegue consultar a conta diariamente, entre outros recursos, mas a tecnologia também dá elementos para as concessionárias verem onde estão as oportunidades de otimização de seus ativos. Existe um consenso de necessidade de modernização, mas é necessário um programa estruturado. As avaliações falam em um processo que levaria mais de uma década, mas com o avanço das tecnologias é factível que esse prazo seja menor.

InfraDigital – E envolve a troca de ativos obsoletos?

CB: Não basta isso. A conectividade é outro gargalo. Temos um problema com a disponibilidade de rede e talvez a adoção do 5G possa melhorar, porque as soluções de redes inteligentes de energia não podem ser calcadas numa única estrutura. É necessário mesclar sistemas próprios das empresas com sistemas públicos das operadoras de telecomunicações. E essas soluções de conectividade são quase que desenhadas caso a caso. Outra necessidade é o armazenamento de energia, que já tem custos competitivos para determinadas aplicações, assim como os sistemas de emergência para evitar desligamentos e para reduzir contas em horários de pico. As concessionárias precisam acompanhar, em suas áreas, as tendências que as operadoras de telecomunicações têm oferecido em termos de automação residencial, por exemplo.

InfraDigital – Como o Projeto de Lei 414, que discute a portabilidade da conta de luz e moderniza o marco regulatório do setor elétrico para ampliar o mercado livre, influencia nesse quadro?

CB: O PL 414 faz parte da modernização do setor elétrico e está nas mãos do legislativo para ser votado. Será mais um elemento de pressão para que as empresas se mexam na modernização de sua infraestrutura e há previsão que Aneel consiga disciplinar essa modernização, com projetos em envolvem diferenciação de tarifas. Já temos experimentos controlados sobre aplicação de tarifas por região e por horários, chamados de sandbox tarifários. Há discussões avançadas sobre isso entre várias concessionárias. Para aplicar o PL 414, em contrapartida, precisamos de modernização da infraestrutura. Mesmo se não for feita pelo lado regulatório, as mudanças serão feitas pelo mercado. A tecnologia não espera.

InfraDigital – É o caso da medição remota?

CB: A medição eletrônica avançou da pior forma possível, tendo sido feita, na maior parte, para evitar perdas dentro de áreas complexas. O investimento é grande para a pequena parcela atendida. É um aporte alto para recuperar baixo valor agregado, mas ela foi acionada para resolver um problema crônico. Nesse tipo de aplicação, não é possível explorar todas as funcionalidades da ferramenta de medição inteligente. O Brasil usou medição remota, mas ainda tem subutilização do potencial dos equipamentos. Seria interessante adotá-la para habilitar opções tarifárias que tragam esses clientes para uma base de faturamento normal, com tarifas menores em horários diferenciados. Há concessionárias fazendo programas de substituição de medidores também em áreas normais, não foram só implementações de baixa renda. Há mais de 15 programas já implementados no Brasil, mas foram apenas pilotos e seria difícil e injusto tentar mencionar todos.

InfraDigital – E eles tem um perfil?

CB: Quase todas as concessionárias no Brasil já fizeram programas de medição remota, com escala de mais de 5 mil consumidores e até 80 mil. Existem projetos maiores escalas em desenvolvimento, no Sul do Brasil, na Copel e na Celesc, com milhares de consumidores. Em Minas também a Cemig está implementando processo similar, assim como a Enel tem também iniciativas nesse sentido. O mesmo acontece com experiencias recentes da CPFL, Elektro e a EDP, para uma futura escalada. Tem muita coisa sendo feita, mas nada de forma estruturada em termos de política pública para dar sustentação. Isso não dá a segurança necessária para tomadas de decisões de investimento de longo prazo nas empresas. Normalmente esses ganhos de eficiência levam tempo e a empresa fica com 100% dos riscos, com obrigações de captura dos eventuais ganhos para repassar para modicidade tarifária e com dúvidas sobre como poderia capturar a parte necessária dos benefícios de modernizar sua rede. É necessário ter uma previsão mínima de recuperação dos investimentos.

InfraDigital – A digitalização não está limitada à ponta, nos consumidores. Há muita coisa sendo feita nas redes?

CB: A automação de sistemas avançou bastante em áreas operacionais, desde comando a distância até o sensoriamento de rede, mas existe uma grande limitação que são os sistemas de comunicação. Isso ainda é uma barreira. Em alguns casos, eles não viabilizam investimentos. As empresas são cobradas pela Aneel para melhorar seus índices e têm feito investimentos relevantes para instalação de automação, mas não só nisso, realizam cada vez mais investimentos também em sistemas de gestão desses equipamentos, de sistemas de controle que estão avançando muito, de sistemas integrados de gerenciamento. É um trabalho que acontece em paralelo.

InfraDigital – As teles continuam como um problema?

CB: Os sistemas públicos de telecomunicações priorizam o mercado de varejo, onde estão o maior volume e margens. As operadoras de telecomunicações focam no cliente granular e nas melhores margens. Até onde acompanho, os acordos com concessionárias de energia são limitados, o que leva a implantação de sistemas próprios de telecomunicações pelas empresas de energia. É bom porque viabiliza os projetos, mas é ruim porque tem um custo operacional a mais, ou seja, não só da rede elétrica como da rede de telecom. E não há uma regra, cada implementação tem uma lógica própria, quase como um desenho feito sob medida, dependendo do que se tem que fazer, das condições de atendimento local em um país de dimensões continentais como o Brasil. Normalmente, as concessionárias de energia usam mais de um sistema de telecom, com alternativas dentro de uma abordagem técnica e econômica. Não tem uma receita pronta. Em muitos casos, na falta de opções viáveis, acaba-se inviabilizando a implantação, porque tem que se pensar nos custos futuros para operar e manter os sistemas de telecom.

InfraDigital – Mas tem havido diálogo com grandes fabricantes de telecomunicações para avançar em soluções na área de energia?

CB: As empresas fabricantes brasileiras têm muito conhecimento, de classe mundial na implementação de produtos baseados em novas tecnologias e por isso está capacitada e tem participado das discussões de modernização. Mas existem outras questões que envolvem também não só as barreiras já mencionadas sobre a regulamentação brasileira para a recuperação de custos em operações reguladas, mas também as tarifas e regras de importação, necessidade de maior interação na elaboração das discussões do programa de modernização entre o governo e o setor eletrônico local, além da demanda por profissionais capacitados nas empresas que irão cuidar da implantação destes projetos. Já existe demanda e capacidade, além de competência instalada. Temos projetos de otimização energética em shopping centers, com a possibilidade de divisão de conta por lojas, assim como existem avanços na Indústria 4.0, que permitem a otimização de energia dentro de plantas industriais. A questão é que essas iniciativas, que acontecem no setor privado, não se replicam ainda nas redes públicas de energia, por questões de incertezas de recuperação de custos.

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