Artigo: As consequências da “corrida do ouro” por outorgas de geração

Gustavo Morais* – 18.01.2023 –

Não é segredo a velocidade da expansão da geração por fontes eólicas e solar nos últimos anos na matriz brasileira, impulsionadas principalmente pelo PROINFA (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas), Leilões de Energia de Reserva e, no caso da energia solar, pela regulação da micro/mini geração distribuída.

Dados da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) mostram que, nos últimos 10 anos, a capacidade instalada de energia eólica no Brasil aumentou 924%, e a energia fotovoltaica saiu dos incipientes 5 MW instalados para quase 6.500 MW.

A maturidade das fontes, somada à intensa pressão tarifária imposta pela concessão de descontos nas tarifas de transporte de energia elétrica a esses empreendimentos culminou na publicação da Lei nº 14.120/2021, limitando esses benefícios a projetos que solicitassem autorização para geração até 01/03/2022.

A publicação da Lei gerou uma “corrida do ouro” para obtenção das autorizações com a manutenção dos benefícios nas tarifas de uso da rede (TUSD/TUST), de modo que, entre 2021 e 01/11/2022 foram publicadas 1.754 novas autorizações e concessões, totalizando quase 98,5 GW de novos projetos, sendo quase 70% dos projetos de fontes eólica ou solar, com outros aproximados 200 GW sob análise da ANEEL – sobrecarregando a Agência e estendendo ainda mais o prazo para emissão das outorgas.

Cerca de 60% dos novos projetos outorgados nos últimos 5 anos concentram-se na região Nordeste. Quando incluímos a esse número o estado de Minas Gerais – cuja região norte possui excelentes níveis de radiação – chegamos a uma concentração que supera 85% das novas outorgas de projetos de geração centralizada.

O consumo de energia, por sua vez, permanece concentrado na região Centro-Sul do Brasil, distante de onde essa energia é gerada. De acordo com dados da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), o Sudeste/Centro-Oeste foi responsável por cerca de 57,35% da energia consumida entre janeiro e agosto de 2022, e a região Sul vem logo na sequência com 18,60%.

O transporte dessa energia entre o ponto de geração e o de consumo exige vultuosos investimentos, e projetos de grande complexidade de execução. No curto prazo, isso significa um gargalo para o escoamento da energia.

Esses efeitos são velhos conhecidos do empreendedor que investe nessas áreas, o que é evidenciado pela elaboração da Resolução Normativa nº 1.030/2022 que trata das restrições de geração sofridas por parques eólicos, e da Consulta Pública nº 48/2022, que trata dos cortes sofridos por empreendimentos fotovoltaicos.

Ciente dessa dinâmica, a ANEEL, no dia 20/09/2022 aprovou a revisão dos procedimentos que determinam a tarifa cobrada dos geradores (REN nº 1.041/2022) para o escoamento da energia de modo a intensificar o chamado “sinal locacional” – ou seja, componente da tarifa que sinaliza ao empreendedor a necessidade de investimentos na transmissão de energia, sendo tão maior quanto for a distância pela qual a energia viajará até chegar ao consumidor.

De acordo com estimativas da própria ANEEL, a medida tem potencial para reduzir o custo da tarifa em 2,4% para consumidores localizados no Nordeste, e 0,8% para consumidores localizados no

Norte, transferindo o custo (cerca de R$ 1,23 bilhão anuais) para o consumidor que realmente se beneficia dessa infraestrutura.

A decisão, apesar de amplamente discutida com a sociedade em 3 fases de consultas públicas, que duraram mais de 200 dias, foi suspensa após aprovação do Projeto de Decreto Legislativo nº 365/2022, de autoria do deputado Danilo Forte (União Brasil/CE) na última quarta-feira, dia 09/11/2022, sob alegação de que a medida, na prática, tem potencial de reduzir os investimentos em geração na região Nordeste.

No dia 01/11/2022 o Ministério de Minas e Energia também publicou, para consulta pública, através da Portaria nº 702/2022, minuta de instrumento para realização de procedimento competitivo para contratação de margem de escoamento no Sistema Interligado Nacional. O procedimento já era aguardado pelos agentes de geração, que convivem com a disputa pelo acesso à rede com “projetos de gaveta”, ou seja, aqueles empreendimentos que obtém as licenças implantação e conexão do empreendimento, porém sem perspectivas reais de sua viabilização.

O certame tenta no curto prazo, através da competição, sanar a longa fila de projetos eólicos e fotovoltaicos que aguardam sua vez de terem publicada a autorização para seguir com o projeto. O objetivo é selecionar os melhores projetos de geração disponíveis em regiões com recursos limitados de transmissão da energia, e ao mesmo tempo garantir recursos para induzir a redução das tarifas pagas pelo consumidor.

A proposta é de que o processo funcione de modo que os empreendimentos interessados devem sinalizar até 3 opções de locais para sua interligação à rede, cuja capacidade remanescente de transmissão de energia será sinalizada pelo ONS (Operador Nacional do Sistema), subsidiado por informações disponibilizadas pelas transmissoras de energia.

Os empreendimentos irão então oferecer lances para que obtenham o direito de conexão, precificando a escassez do recurso de transporte da energia. Esses empreendimentos terão seus pedidos de obtenção de outorga analisados de forma prioritária pela ANEEL, invertendo a lógica atual que orienta a ordenação dos empreendimentos por “ordem de chegada” na análise dos projetos. Ou seja, quem primeiro faz o pedido para explorar o recurso em uma determinada região receberá primeiro a autorização, sem uma avaliação da viabilidade econômico-financeira de cada projeto.

A exigência de aportes de garantias financeiras dos vendedores do processo competitivo também impõe impactos financeiros aos empreendimentos, favorecendo a seleção dos projetos que de fato possuem intenção de serem construídos e integrados ao sistema elétrico brasileiro. A medida é defendida por associações setoriais – como ABEEólica (Associação Brasileira de Energia Eólica) e Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) – como uma das principais soluções para o problema, que poderia inclusive eliminar a necessidade de realização do leilão de margem de escoamento.

A cobrança de um prêmio para obtenção da margem de escoamento significa necessariamente um custo adicional para os projetos vencedores, o que pode impactar negativamente os preços de venda da energia. Os aportes de garantias, por sua vez, imputam ao empreendedor um risco financeiro (caso a garantia seja executada), mas que em caso da plena implantação e entrada em operação do

empreendimento, não irão representar de fato custo significativo ao empreendimento, ou seja, não devem necessariamente se traduzir em aumento do preço da energia comercializada.

O desafio da implementação do sistema de aporte de garantias para acesso à conexão, no entanto, é a execução dessas garantias. A intensa judicialização da execução das garantias de fiel cumprimento de leilões de energia elétrica do ACR (Ambiente de Contratação Regulada), por exemplo, fornecem uma dimensão de que a medida pode ser menos eficaz na prática do que é em teoria.

É importante destacar que o procedimento não fere o direito de acesso a rede a todos os empreendedores, garantido pela Lei nº 9.074/1995, constituindo apenas um meio para seleção dos empreendimentos com maior viabilidade de construção, e tem sua previsão legislativa no Decreto nº 10.893/2021 – que também flexibilizou a exigência de comprovação de viabilidade de conexão à rede para obtenção das autorizações para geração.

A sistemática do processo ainda deverá ser detalhada pelo MME, abordando, por exemplo, que os diferentes projetos deverão pleitear a capacidade de escoamento em datas diferentes.

Por fim, há que se destacar que a criação de um processo competitivo como integrante da lógica de organização da emissão de novas autorizações de geração trata um problema organizacional do sistema, originado em um problema estrutural, que é o planejamento da expansão da transmissão.

O Ministério de Minas e Energia, atento à necessidade de aumentar a capacidade de transporte da energia entre essas regiões, indicou na última quinta-feira (03/11/2022) com a publicação de relatórios sobre os estudos de expansão das interligações, a realização de um leilão extraordinário no segundo semestre de 2023 para concessão de 2.375 km de novas linhas para escoamento da energia geradas nas regiões Norte e Nordeste.

A acertada decisão do MME em iniciar as discussões para implementação de mecanismo competitivo para acelerar a instalação dos projetos renováveis tem potencial para destravar investimentos, fornecendo maior agilidade ao processo regulatório, e incentivando o empreendedor a priorizar os projetos que já possuem sua viabilidade firmada em curto prazo. É importante, no entanto, que o processo não seja utilizado de forma recorrente como uma “muleta” do problema estrutural da dificuldade da expansão da transmissão.

Caberá à EPE e ao Ministério, com grande interação com os agentes, planejarem da melhor forma os próximos projetos de transmissão da energia, equacionando-os com a expansão da geração, evitando ociosidade da rede, e proporcionando assim uma matriz cada vez mais renovável e econômica para o consumidor brasileiro.

*Gustavo H. Morais, Coordenador de Gestão de Geradores da Trinity Energias Renováveis.